por Alexandre Heredia- Quero fazer uma reclamação!
O velho funcionário observou a figura à sua frente. Se não estivesse andando e falando, dificilmente seria reconhecível como humano. Era apenas uma massa disforme de carne, ossos e sangue. A cabeça pendia sobre o peito, presa apenas por tendões.
- Pois não?
- Olha meu estado!
- Estou vendo.
- E então?
- E então o que?
- Não vem com essa. Não era para ser assim. E você sabe disso.
- Sei?
- Claro!
O velho coçou a longa barba. Tentou afastar da mente imprecações que não cairiam bem aos olhos do patrão. Ele sim, sabia de tudo o que acontecia. Pensou em pedir a alguém que trouxesse uma aspirina, mas sabia que seria impossível. Suspirou.
- Me deixa ver seu caso. Nome?
- Daniel.
- Completo?
- Kurabstienchencko.
- Japonês, hein? Desculpe. Está aqui, nada de errado. Quero dizer, nenhuma falha processual. Tudo foi cumprido nos conformes. Veja: até a assinatura oficial está no lugar. Fora a ironia, o resto está tudo OK.
- Mas por que? O que eu fiz para merecer? Sempre fui um bom homem. Caridoso, penitente. Sabe quantas vezes forniquei em toda minha vida? Nenhuma! Pode ver aí em seu registro. Quando tinha pensamentos pecaminosos passava o dia inteiro rezando.
- Pois é, a vida é assim...
- Eu deveria ser é canonizado! Eu nunca duvidei de nada! Nunca! Aliás, foi por causa dessa fé que eu entrei lá! E o que eu ganho por uma vida inteira de abnegação e trabalho? Isso!
Estava difícil acompanhar o discurso do pobre-coitado, pois sua cabeça estava numa posição bastante ruim, completamente invertida, e aquilo com certeza estava bagunçando as referências espaciais dele, pois agitava os braços desengonçadamente, enquanto cambaleava de uma lado para o outro, tentado se equilibrar no pouco que restava de suas pernas.
- Olha - começou o velho, já acostumado com aquele tipo de reclamação - você precisa compreender que não é bem assim que as coisas funcionam. Fé não precisa de prova, senão não seria chamada de "fé", e sim de "prova". Não se tenta provar algo improvável. Simplesmente se acredita.
- Mas eu acredito! Sempre acreditei, tanto que entrei lá sem medo nenhum!
- Mas entrou por soberba. Queria provar que estava certo. Aí, meu amigo, babau...
- Babau?
- Babau. Aliás, não posso nem deixar você entrar por causa disso. É uma pena, mas o senhor vai ter que pegar o elevador.
- Não, espera! Quero falar com o Homem...
- Você acha que ele tem tempo para todo mundo que reclama da vida? Não, desculpe, não será possível. Por favor, siga estes senhores até o elevador. Chegando lá em baixo entregue esse papel e...
- Não! Nem a pau! Me solta! Eu era um santo! UM SANTO! Isso não pode acontecer comigo.
- Me desculpe, mas regras são regras. Se serve de consolo, já erramos antes. Veja a Joana D'Arc, queimamos ela e depois a transformamos em santa. Pode ser que seu gesto no futuro possa ser utilizado como marketing, e aí você volta rapidinho. Mas não tenha muitas esperanças. Os tempos são outros, as histórias vem e vão, aparecem e desaparecem em questão de horas. Está cada vez mais difícil separar a fé verdadeira da insanidade absoluta. Antigamente, veja você, chegamos a canonizar até mesmo um cachorro. Um cachorro! Você imagina o entrave burocrático que isso foi?
Enquanto falava, o velho funcionário acenou aos guardas que encaminhassem o condenado ao elevador. Ele se debateu e sujou tudo com sangue, mas não tinha músculos suficientes para lutar contra, e foi jogado. Antes de entrar, olhou para os lados com a cabeça pendendo dos ombros e abriu a boca, pronto para uma súplica. Mas antes que conseguisse vocalizá-la, foi chutado para dentro do elevador, que fechou as portas com um baque.
- Cada um que me aparece... - reclamou o velho, batendo os respingos de sangue de sua toga. Seria um verdadeiro inferno tirar aquelas manchas. Suspirou. - Quem é o próximo?
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O que aconteceu ANTES disso?
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