Antelóquios

  O que são exatamente Antelóquios? De acordo com o dicionário:

antelóquio: do Lat. anteloquiu; s. m., aquilo que se diz antes; prefácio; prólogo.

No caso, Antelóquio nada mais é que um exercício literário simples. Pega-se uma notícia real, disponível aos borbotões na Internet, e cria-se uma ficção anterior ao fato narrado. Só isso. Não há compromisso com a verdade. Não há preocupação com os envolvidos. Simplesmente é utilizado um fato real para inspirar uma narrativa fictícia. Gostou da idéia? Faça um Antelóquio e me mande. Quem sabe eu não coloco aqui, junto com os meus? Notícias bizarras acontecem todos os dias, apenas aguardando que alguém inspirado as aproveite. Quer exemplos? Abaixo segue uma sequência de Antelóquios criados por mim.

ATENÇÃO: Todos os textos aqui expostos são trabalhos de FICÇÃO. A responsabilidade pela veracidade dos fatos das notícias referidas é totalmente dos veículos apontados. Caso a exploração de alguma notícia ofenda ou difame alguém pessoalmente, peço que entre em contato comigo, que ela será imediatamente retirada.
 


Thursday, March 17, 2005

O ULE LHEE

© Alexandre Fernandes Heredia

"Água. Muita água!", pensou Rassa enquanto caminhava entre os escombros.

Foi muito rápido. Não foi que nem nos filmes que ela tinha assistido com Raj, seu namorado (onde estaria Raj?). Foi como uma enchente sem chuva. A água começou a subir, subir, subir... Tragou carros, pessoas, vidas. Milhares delas.

Rassa vagava pelos escombros. O chão ainda estava encharcado, apesar de terem se passados meses desde a tragédia. Poucos se aproximavam daquele local. Tinham medo. Menos Zeki. Imortal em seus 21 anos, Zeki vasculhava os restos de civilização destruída com uma curiosidade mórbida. Dava risos nervosos enquanto saltava carcaças de automóveis e postes de luz tombados, apenas para sair correndo apavorado em seguida. E voltava toda noite, assim como Rassa.

Mas ela não tinha medo. Algo que não compreendia a atraía para aquele lugar. Uma busca sem objetivo, mas que não conseguia abandonar. E vagava, escondida pelas sombras infelizmente constantes naquele lugar amaldiçoado. Ule Lhee. Era um bairro bonito à beira mar. Agora é só um cemitério misturado com um ferro-velho.

De repente Rassa sentiu que não estava sozinha. Em pouco tempo a sensação se confirmou. Uma criança nua a acompanhava. Tinha o olhar perdido de órfã, e os poucos cabelos empastados colados no crânio e face.

- Você está ouvindo? - disse ela. Rassa apurou os sentidos, mas não ouviu nada. - Alfairus me chama.

Rassa não gostava de Alfairus. Dukun charlatão. Sempre aproveitava o momento de perda e dor de alguém para lucrar.

- Não ouço nada - disse ela. - Está enganada. Sou Rassa. Qual o seu nome?

- Não sei. Não perguntei. Não me disseram.

Rassa encolheu-se. Não era a primeira que encontrava naquele estado. Era difícil para todos. Tentou expressar seu pesar em forma de carinho, mas a menina não pareceu se importar com isso. Olhava para frente, e começou a andar naquela direção. Rassa a seguiu.

Algum tempo depois chegaram a uma casa. Era o "templo" de Alfairus. Dezenas de pessoas choravam lá dentro. No "altar" uma mulher pranteava com o rosto coberto por um lenço negro. Alfarius, ao seu lado, parecia estar em transe. No canto da sala, repórteres britânicos anotavam tudo. Queria sair dali. Não apreciava aquele teatro macabro, mas quando tentou puxar a menina, ela se desvencilhou.

- Mamãe - suspirou ela, olhando para a mulher no altar. Rassa se compadeceu.

- Vá até lá. Fale com ela.

Rassa acompanhou com o olhar a menina caminhar nua por entre a pequena multidão. Ela parecia mais indefesa do que quando a encontrara. Quando chegou perto da mãe, agarrou-a no vestido, mas não recebeu resposta.

Rassa sabia que era hora de intervir. Aproximou-se de Alfarius, que parecia realmente estar num transe, como se estivesse sob o efeito de ópio, e sussurrou em seu ouvido:

- Deixe-as em paz. Liberte-as. A menina está morta. Não há volta. Não tome mais o dinheiro de ninguém.

"Sinto muito. Não busques mais, tua filha está morta", declarou Alfairus, depois de uns segundos de silêncio sepulcral. O repórter disparou sua caneta, empolgado com a revelação.

Rassa pegou a mão da menina e retirou-a de lá. Não sabia onde levá-la, mas sabia que com certeza as respostas para ambas não estariam naquele lugar.

Retornou, lentamente, para o bairro devastado pela onda. Para seus pares, que aos poucos surgiam, às vezes para fugirem para o mar que os vitimou, às vezes para procurar entes queridos, às vezes apenas para vagar sem rumo ou objetivo. Como ela.

O ronco do jipe de Zeki soava ao fundo. Rassa ignorou. Agarrou a mão da menina e adentrou novamente o Ule Lhee. A Cidade dos Mortos.

Entenda essa história, seguindo o link abaixo:
http://ultimosegundo.ig.com.br/materias/mundo/1901001-1901500/1901404/1901404_1.xml